Trata-se de uma expressão oriunda do alemão (Verfassungspatriotismus), utilizada originalmente pelo historiador Dolf Sternberger[1] (professor de Direito de Heidelberg,) na década de 1970, retomada pelo sociólogo Mario Rainer Lepsius e popularizada por Jürgen Habermas, a partir dos anos 80[2]. Na Itália, parte da doutrina utiliza a expressão patriotismo republicano ou republicanismo patriótico[3], embora parte da doutrina identifique uma tênue distinção entre as duas expressões[4].
Embora, num primeiro momento, a expressão pareça estar ligada ao nacionalismo, à unidade étnica, nacional e cultural, o conceito é exatamente o contrário. O escopo do “patriotismo constitucional” é afastar-se no nacionalismo exacerbado, totalitário (ultra-nacionalismo), que ensejou a xenofobia, o preconceito e o holocausto no nazismo, na tentativa de buscar um novo modelo de identificação política, dotada de um profundo multiculturalismo e fundada no respeito à Constituição.
Segundo Dolf Sternberger, a Constituição alemã foi capaz de auxiliar os cidadãos alemães a superar as chagas e a vergonha do nazismo, alcançando um novo estágio diferenciado de “patriotismo”. Não mais um patriotismo fundado na identidade étnica, racial, linguística, histórica e cultural, mas fundada no respeito à Constituição, à Lei Fundamental alemã, de 1949 (Grundgezets), também conhecida como Lei Fundamental de Bonn[5].
Nas palavras de Habermas, “para nós, na República Federal, patriotismo constitucional significa, entre outras coisas, ter orgulho do fato de que fomos capazes de superar permanentemente o fascismo, estabelecendo uma ordem baseada na lei, e ancorando-a em uma cultura política liberal razoável”[6]. Para ele, o patriotismo constitucional é uma força motivadora, um vetor de fortalecimento e união de populações essencialmente multiculturais, pluralistas, não se amparando em ideias de religião, nação, território, idioma etc., tendo “conteúdo universalista de uma forma de patriotismo cristalizado em torno de um estado democrático constitucional”[7]
Dessa maneira, o patriotismo constitucional é “uma maneira de legitimar a democracia a partir de uma consciência história que possibilita conflitos de interpretação sem que haja a exclusão de qualquer cidadão”[8]. Segundo Maria Eugenia Bunchaft, em obra específica sobre o tema, “a construção da identidade com base na nacionalidade tem sido objeto de forte contestação no seio do pensamento político contemporâneo, razão por que autores sugerem a emergência de novas formas pós-nacionais de identificação política, tais como a perspectiva habermasiana do patriotismo constitucional”[9].
Tal percepção não ocorreu na Alemanha logo após a entrada em vigor da Lei Fundamental alemã, promulgada em 23 de maio de 1949, mas paulatinamente, auxiliada pela forma engenhosa com a qual a Lei Fundamental foi interpretada pelo Tribunal Constitucional alemão. O próprio Sternberger, ao falar do instituto na Alemanha, afirma que “a Constituição saiu da penumbra em que se encontrava ao nascer. Na medida em que ganha vida, ao surgir atores e ações vigorosas e em tanto se vivificam os órgãos que delineavam como devemos utilizar nós mesmos as liberdades que ali se garantiam, aprendemos a nos mover com e dentro desse Estado. Pois bem, nessa medida se ter formado de maneira imperceptível um segundo patriotismo, que se funda precisamente na Constituição. O sentimento nacional permanece ferido e nós não vivemos em uma Alemanha completa. Mas vivemos em uma integridade de uma Constituição, em um Estado constitucional completo e este mesmo é uma espécie de pátria”[10].
Assim, não se pode confundir patriotismo com nacionalismo. Quanto a esse último, segundo Benedict Anderson, “as nações se constituíram como comunidades imaginadas por meio de um arsenal de elementos em comum, com: o mito de origem, heróis, línguas, documentos, folclore. Em suma, utilizaram-se de meios simbólicos e linguísticos na criação de um sentido de lealdade entre os indivíduos”[11].
O nacionalismo é essencialmente excludente, como afirma Bunchaft: “as culturas nacionais são marcadas por profundas divisões internas, sendo que o elemento de exclusão de minorias culturais é intrínseco à formação das identidades nacionais. Qualquer construção de identidade nacional pressupõe, necessariamente, o caminho da exclusão da diferença, pois, na busca da homogeneidade nacional, são abafadas as demais identidades que eventualmente com ela conflitem”[12].
Por isso, faz-se necessário construir uma nova espécie de sentimento de unidade: o patriotismo, fundado na lealdade aos princípios constitucionais e às instituições político-democráticas, que conduzirá “a uma coesão política independentemente de uma concepção etnocultural de cidadania”[13].
Em resumo, como afirma a doutrina, “o patriotismo constitucional vem substituir o nacionalismo, ou seja, o Estado-nação é substituído por um Estado Democrático de Direito que encontra sua identidade não em características etnoculturais, mas na prática dos cidadãos que exercitam seus direitos de participação no processo político”[14].
Enseja o multiculturalismo pois, independente da raça, cor, etnia, as pessoas se congregam em torno de valores mais universais
Não obstante, há autores que criticam a fraqueza ou astenia do movimento: “talvez a preocupação comum mais compartilhada seja a de que o patriotismo constitucional seria uma concepção de patriotismo muito fraca e sem entusiasmo suficiente para inspirar um genuíno apego e solidariedade”[15].
Identificando o patriotismo constitucional nos Estados Unidos, Habermas afirma que “em nível nacional, encontramos o que nos Estados Unidos é chamado de ‘religião cívica’ – um ‘patriotismo constitucional’ que une todos os cidadãos independentemente de seus antecedentes culturais ou heranças étnicas. Trata-se de uma grandeza meta-jurídica, isto é, esse patriotismo é baseado na interpretação de princípios constitucionais universais, reconhecidos dentro do contexto de uma determinada história e tradicional nacional. Tal lealdade constitucional, que não pode ser imposta juridicamente, enraizada nas motivações e convicções dos cidadãos, só pode ser esperada se eles entenderem o Estado Constitucional como uma realização de sua própria história”[16].
Não obstante, podemos afirmar que as crises econômicas das últimas décadas, aliadas às crises migratórias decorrentes da guerra e da pobreza, enfraqueceram o movimento denominado patriotismo constitucional, diante da crescente onda conservadora, protecionista, com lampejos isolados de xenofobia.
[1] Verfassungspatriotismus, Insel, Frankfurt. A. M. passim; Patriotismo Constitucional, Bogotá, Universidade Externado de Colombia, passim. No prefácio da obra, na edição colombiana, José María Rosales, afirma que “Dolf Sternberger (1907-1989) tem sido, sem dúvida, um dos mais lúcidos historiadores do pensamento político no século XX. Seus trabalhos historiográficos, na linha das investigações reconstrutivas de Hannah Arendt ou Michael Oakeshott, tem mostrando a profunda continuidade argumentativa que existe desde a experiência e a reflexão políticas no mundo clássico até a modernidade” (Op. Cit., p. 31).
[2] “Habermas faz uso da nomenclatura ‘patriotismo constitucional’ pela primeira vez durante o debate sobre o passado nacional-socialista que, no verão de 1986, opôs os intelectuais da Alemanha Ocidental. Nesse debate entre os historiadores, estava em questão como dar uma resposta consistente aos alemães de sua identidade política e do próprio passado destes de nazismo e campos de concentração. (...) Habermas queria, na verdade, procurar um mecanismo que proporcionasse a cada cidadão a reinterpretação da identidade coletiva na Alemanha, uma vez que os historiadores procuravam encontrar uma interpretação mais amena para as mazelas sociopolíticas ocorridas durante o holocausto. (...) O povo e o nacionalismo são substituídos pela ideia de patriotismo constitucional. Agora, a identidade do sujeito é constituída por um compartilhamento coletivo de uma permanente aprendizagem com os princípios constitucionais” (Vinícius Silva Bonfim. O Patriotismo Constitucional na Efetividade da Constituição, p. 14)
[3] Maurizio Viroli, na obra For Love of Country, afirma que “o Verfassungspatriotismus de Habermas não rompe, de forma alguma, com a tradição republicana; é, na verdade, uma nova versão dela. Ele não só reafirma o princípio do patriotismo republicano de que o amor pela pátria significa, acima de tudo, amor pela república; mas também reconhece, embora com alguma vacilação conceitual, que a república, que é, ou deveria ser, o objeto de amor dos cidadãos, é particularmente a sua própria república; não apenas instituições democráticas, porém instituições que foram construídas num determinado contexto histórico e estão ligadas a um meio de vida – isto é, uma cultura – de cidadãos daquela república em particular”. Se no nacionalismo tradicional (xenófoto e protecionista) a impureza racial e a heterogeneidade são fraquezas, no patriotismo republicano os algozes são a tirania, o despotismo, a opressão e a corrupção”.
[4] Segundo Maria Eugenia Bunchaft, “um dos mais ilustres filósofos italianos, Maurizio Viroli, trabalha com uma ideia de patriotismo um pouco distinta do patriotismo constitucional habermasiano, denominando-o patriotismo republicano. O patriotismo republicano, assim como o patriotismo constitucional, também se apoia nos princípios do ordenamento jurídico, tendo, contudo, uma ligação mais forte com a tradição republicana e a identidade nacional. (...) Ele reafirma o cânone do patriotismo republicano de que o amor ao país significa, acima de tudo, amor à república. Também reconhece que a república é ou deveria ser objeto de amor dos cidadãos em sua própria república particular: amor não apenas às instituições democráticas, mas às instituições que foram construídas em um contexto histórico particular e são ligadas ao modo de vida dos cidadãos daquela república particular. (...) Ao invés de invocar a identificação com valores etnoculturais, Habermas e Viroli pretendem uma identificação baseada em uma cultura política participativa. (...) O patriotismo de Viroli descreve o amor ao seu país como um amor apaixonado dos cidadãos por suas instituições republicanas e formas de vida, e permanece particular, embora possa facilmente ser traduzido em solidariedade ativa com outras pessoas. Diante dessa estrutura conceitual, Viroli avalia o patriotismo constitucional como sendo demasiadamente universalista. Argumenta que o amor à república não pode ser apresentado como um apego aos valores universais da democracia”. Patriotismo Constitucional, p. 89-90.
[5] Segundo Dolf Sternberger, “Cresceu no sentimento nacional uma clara consciência da bondade desta lei fundamental. A Constituição saiu da penumbra em que se encontrava ao nascer. (...) Pois bem, nessa medida se formou de maneira imperceptível um segundo patriotismo, que se funda precisamente na Constituição. O sentimento nacional permanece ferido e nós não vivemos em uma Alemanha completa. Mas vivemos na integridade de uma Constituição, em um Estado constitucional completo e este mesmo é uma espécie de pátria” (Patriotismo Constitucional, p. 45).
[6] Identidad Nacional y Identidad Postnacional, p. 115-116. Prossegue o filósofo alemão: “A Constituição de 1946 deu, em sua parte geral, uma resposta ao regime nazista. Em cada um de seus 63 detalhados artigos de direitos humanos, soa o eco da injustiça so
[7] Antonio Maia. A ideia de patriotismo constitucional e sua integração à cultura político-jurídico brasileira, p. 23. Prossegue o autor: “o aspecto central do Verfassungspatriotismus reside em seu caráter universalista, ancorado nos princípios republicanos de chauvinismo nacionalista relacionadas, via de regra, às noções tradicionais de patriotismo”.
[8] Vinícius Silva Bonfim, Op. Cit., p. 14.
[9] Patriotismo Constitucional, p. 17. Prossegue a autora: “Nesse quadro teórico, a cultura política de um país, segundo o filósofo, cristaliza-se em torno da Constituição em vigor. Toda cultura nacional, sob a luz da própria história, realiza um tipo de leitura diferente para os mesmos princípios constitucionais, os quais também se coroporificam em outras constituições republicanas. Em sociedades multiculturais, uma cultura política cristalizada em torno de um projeto constitucional pode assegurar uma coesão política e um grau de integração social capazes de transcender os vínculos de língua, cultura e etnia” (Op. Cit., p. 17).
[10] Patriotismo Constitucional, p. 718.
[11] Apud Maria Eugenia Bunchaft. Op. Cit., p. 23.
[12] Op. Cit., p. 30.
[13] Maria Eugenia Bunchaft. Op. Cit., p. 36.
[14] Op. Cit., p. 36.
[15] Ciaran Cronin. Democracy and Collective Identity: In Defence of Constitutional Patriotism, p. 04.
[16] Apud Antonio Maia, Op. Cit, p. 26.
Patriotismo Constitucional. Um excelente assunto! Muito obrigado! Realmente estamos vivenciando, mais um vez, este momento.